Carta a uma paixão definitiva
(Para Glória Nogueira)
Lobinha: estive revolvendo velhos papéis e encontrei um bilhete seu. O conteúdo não vou dizer, por ser homem (à moda de Garcia Lorca), mas o bilhete termina assim: “Te gosto. Eu”. Sabe que sua letra era mais redondinha? É normal, pois este “pergaminho” tem vinte anos de idade. Recordo o sorriso da Glória, ao me entregar o envelope com timbre da revista. Pedi que ela não fosse embora, queria que uma velha amiga participasse de minha alegria, naquela tarde de verão carioca. Era bom poder, finalmente, respirar…
Há alguns dias, Itamar perguntou por você. Disse-lhe que você continuava em Paris mas nos telefonamos e escrevemos sempre. Vivemos a mesma paixão há tantos anos! Sabe que nem me incomodam mais “incidentes” passados? Prefiro (disse isso ao Itamar) recordar nosso primeiro encontro no Lamas, não esse bar de hoje, mas aquele do Largo do Machado, onde meu amigo Rodrigues, o melhor garçom do Rio, me protegia descaradamente. O “choro”” do uísque não era mais choro e sim um convulsivo pranto. Copos cheios, pratos igualmente generosos.
Depois da conversa com Itamar, lá na Globo, passei no “novo Lamas”. Que decepção! Não tinha a barraquinha de frutas na porta e Rodrigues deixou a casa há mais de dez anos. O danado ganhou na loteria federal e comprou uma fazenda no interior de Goiás; viajou atracado à mulata Luísa, que, em tempos idos, fora girl de Carlos Machado, o “Rei da Noite”. Acabaram com o nosso cenário, mas ninguém jamais apagará de minhas lembranças o velho Lamas. Principalmente o Lamas daquele dia.
Você estava com o minivestido bordô, esse que ainda guardo na última gaveta da cômoda. Eu disse: “Seus olhos são como dois sóis de Van Gogh”. Olhos luminosos que compunham o mais lindo rosto que a um homem seria dado beijar. Itamar até brincou quando, juntos, recordamos aqueles tempos: “Rapaz, você continua gamadão!”. Continuo. E da mesma exagerada forma como os argentinos dizem de Gardel, que “está cantando cada vez melhor”. Vinte anos de paixão. Somente aqui, bem dentro do meu peito, o tempo não passou. Nem passará.
Rodrigues chegou, com olhar safado. “O de sempre, doutor?”, perguntou, só para me agradar, porque numa madrugada louca confessei que adorava essa frase do garçom para o freguês de tantas garrafas. “O de sempre?” — eis a frase que revela intimidade entre dois amigos, embora um apenas sirva e o outro beba. As mulheres adoram homens conhecidos de garçons, porteiros, barmen. Notei que você gostou e pedi duas taças de absinto. “Não é o de sempre, Rodrigues, porque hoje é um dia muito especial…”, comentei, tentando ignorar a própria timidez.
Conversamos, declamei poemas. Recordei o mito dos andróginos e, exausto de tanta representação, toquei finalmente a ponta de seus dedos e falei a primeira das verdades: “Estou explodindo de amor por você”. Não foi, porém, sussurrante; foi um grito desesperado, explosão que fez o Lamas inteiro parar. Todos olhavam para nossa mesa, mas nem liguei – um homem apaixonado não reserva tempo ao pudor.
Você era casada, eu também. Não vivíamos propriamente infelizes, talvez apenas apáticos. Necessitávamos, ambos, de um sopro de vida. Éramos tão jovens! Você, 22 anos; eu, 26. Saímos do Lamas meio embriagados, de mãos dadas, e seguimos, agora juntos, o nosso caminho. Não tínhamos nada, apenas um rádio de pilha sintonizado na Rádio Jornal do Brasil. Alberto Reis emprestou alguns móveis que estavam na vitrina da loja dele e Alberto Dines foi nosso primeiro fiador.
Vinte anos se passaram. Toda vez que olho para Daniel, bem mais alto do que eu, tenho consciência da passagem do tempo. Lembra daquela ode de Ricardo Reis que eu costumava dizer, bêbado, ao seu ouvido? Já sobre a fronte vã se me acinzenta/o cabelo do jovem que perdi…
Tomamos conta um do outro, não foi? Envelhecemos juntos, embora os amigos garantam que ainda estou guapo como um rapaz e você continue a mesma gatinha de rosto belo como um cacho daquelas giestas das estradas de Portugal. Os olhos ainda lembram os sóis de Van Gogh.
Aí de Paris você já foi a Maisons Laffitte, como fizemos, juntos, no verão passado? Pois vá, pegue novamente o trem na Gare Saint Lazare, passeie de bicicleta defronte à mansão dos Thibault. Você não estará sozinha; afinal, telepatia serve pra quê? Será como se fôssemos Jacques e Jenny no verão de 1910…
Foi maravilhosamente angustiante conhecer e amar você. À primeira vista, ao primeiro aroma, como deve começar toda paixão. Juro: se de todo fosse impossível tanto amor, eu teria ateado fogo às vestes, com uma garrafa de álcool Zulu.
Volte logo, Paris no verão é muito feia e muito suja. E precisamos, com urgência, programar nossos próximos vinte anos.
Moacir Japiassu – Do livro de Crônicas, Carta a uma paixão definitiva, São Paulo 2007
Japiassu era um grande jornalista e um escritor relativamente subestimado. Ao contrário de alguns jornalistas que, por conheceram algumas técnicas de redação, aventuram-se na literatura e escrevem romances e contos sofríveis, o Japi era um prosador de primeira linha, dono de uma imaginação poderosa. O jornalista paraibano Moacir Japiassu morreu aos 73 anos, em Novembro de 2015. .